segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Ave, tempestas! - Carlos Dias Fernandes

 

A Fialho d’Almeida.

 

Sem Nathercia, sem Jáo, sem os loiros e a gloria

D' Os Luziadas, mas por uma velha historia,

A historia negra do meu sáfaro destino,

— Plano de Satanaz por consenso divino —

Eis-me Luiz de Camões, poeta das tempestades.

Num barco, sobre o mar, desfiando saudades,

Emquanto ruge a rouca voz dos vendavaes ! . . .

Terras do meu paiz, como tão longe estaes

Ó meu sol do Equador, ó meu céo de turqueza

Ó palmeiras reaes, ó pulchra natureza;

Ó matta virgem das serpentes jaguares;

Campos verdes em flor, lagos de nenumphares.

Onde a Victoria régia ao crepúsculo assoma,

Abrindo aos astros o seu cálice de aroma ! . . .

Poentes incríveis d' esmeralda e de violeta!

Quizera em vós molhar meu cálamo de poeta,

Nesta hora afflicta de tormenta em pleno mar.

Ó São Lourenço, vinde os ventos acalmar

Neptuno, ó deus pagão d' estas equoreas plagas

Surge no turbilhão colérico das vagas,

E, como outr'ora ao duro Ulysses forasteiro,

Faze-me ver o teu aspecto alviçareiro,

Compondo o iroso mar, de tridente na mão...

Ah ! como se me aperta o viuvo coração,

Que assistiu sem temor d fome, á peste e á guerra,

Neste immenso covão aquático da terra,

O Golfo de Lyão ! . . . Que tenebroso abysmo

Não ha coragem fria ou sanhudo heroismo

Que se não curve ante o espectáculo d' este horror:

Os ventos todos em satânico furor

Dedilham cantos-chãos na harpa das cordoalhas;

E, qual monstro colhido em sobrepostas malhas

De uma rede sem fim, que se alarga e distende

E que o enlaça melhor quando mais se desprende,

Tal, nas ondas, a nau, em demanda do rumo.

Bufando para a treva o seu hausto de fumo.

Com fragor estalando as juntas colossaes

Contra os bramantes vagalhões e vendavaes,

Torres d' agua a ferver, rochas macissas de ar,

— Singra aos boléos o dorso concavo do mar.

 

* * *

 

Como é frágil, meu Deus, o inflado peito humano

Basta-lhe este esplendor horrífico do oceano;

Uma onda a brincar na fralda de um rochedo,

Porque elle se retraia e palpite de medo,

Sobresaltado como trémula creança.

Só no vosso poder concentrando a esperança.

E eu, Senhor, que heresiarca! ha quasi um mez

Que não escuto o vosso nome em portuguez,

Pobre andarilho exul em terras extrangeiras ! . . .

Meu Deus, reconduzi-me ás plagas brasileiras.

Que me importam Milão e as agulhas do Duomo,

Os Frescos de Da Vinci e as paysagens de Como,

Se, embora as creações magnificas da arte,

O mundo é sempre vão e egual por toda parte ? ! . . .

 

* * *

 

Antes Belém sobre o seu rio somnolento,

Entre palmares destrançados pelo vento;

Santa Maria de Belém, a flor do norte,

Princeza de Judá, erguida pela cohorte

De um guerreiro varão, filho da raça ibérica,

Que a fundou, por seu Rey, nesse valle d' America.

Alli ao menos não se vive atropelado

Por lium.uias legiões, que enchem de lado a lado

As ruas, nesse afan de disputar a pão.

Nesse horto arboral, é mais doce a illusão

De viver. Tudo alli é simples e modesto.

O amor é natural, um sentimento honesto,

Filho de uma affeição reciproca e leal.

O beijo é um como voto, é um sêllo immortal,

Que eterniza no mundo o consorcio das almas.

Mesmo as próprias paixões são meigamente calmas:

Brados sentimentaes da vontade imperfeita,

Coisas que o sangue gera e que o tempo endireita.

 

* * *

 

Ah ! quem me dera o teu repoiso socegado

O panorama verde-crome do teu prado,

Onde os negros anuns piam, catando a relva.

O matto bravo, o virgem bosque, a escura selva.

Lar de Moemas, das indígenas Ophelias,

Que por falta de lyrio esfolharão bromelias

Nos lagos turvos e igapós do Rio-mar,

Em que não morrerão,... porque sabem nadar.

Dae-me o vosso condão, sirenicas princezas.

Flôres humanas, que fluctuaes nas correntezas,

Porque me não devore este ululante pego!...

Fico dentro no mar um verdadeiro cego.

Deve ser muito triste um cego a se afogar!

Ó minha santa Iria, ensina-me a nadar.

Dá-me o teu manto constellado, ó santa Iria!

Tenho frio de horror, toda minh'alma é fria.

Bem vés: não tenho mãe, dá-me um beijo materno,

Não me deixes morrer neste aquático inferno,

Lyrio do mar, Foederis arca hospitaleira,

Padroeira tutellar dos náufragos, padroeira

D' esta minha afflicção horrifica e sem termos!...

Manda um raio de luar a estes equoreos ermos,

Ó meu São Carlos, meu heróico rei de França!

Accende com teu gladio o pharol da esperança;

Com o teu sceptro real aplaca-me estes ventos,

Porque eu aporte salvo aos paramos nevoentos

Da pátria de Colombo; e corra a Annunziata,

Para purificar esta minh'alma ingrata;

Este monstro que habita o meu vil coração,

Sem luz, sem Deus, sem fé, sem paz, sem contricção ! . . .

Este pouco immortal e animico do Nada,

Consciente perfeição no meu ser consummada.

Que só movida pelos brutos escarcéos

Se prosternou contricta em presença dos Céos.

 

Bordo do Gouverneur, sobre o Golfo de Lyão, 9-1906.

 

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Título: Ave, tempestas!

Autor: Carlos Dias Fernandes

Fonte: FERNANDES, Carlos Dias. Solaus. 2. ed. Gênova: Bacigalupi, 1907, p. 19-23.