A Fialho d’Almeida.
Sem Nathercia,
sem Jáo, sem os loiros e a gloria
D' Os Luziadas,
mas por uma velha historia,
A historia negra
do meu sáfaro destino,
— Plano de
Satanaz por consenso divino —
Eis-me Luiz de
Camões, poeta das tempestades.
Num barco, sobre
o mar, desfiando saudades,
Emquanto ruge a
rouca voz dos vendavaes ! . . .
Terras do meu
paiz, como tão longe estaes
Ó meu sol do
Equador, ó meu céo de turqueza
Ó palmeiras
reaes, ó pulchra natureza;
Ó matta virgem
das serpentes jaguares;
Campos verdes em
flor, lagos de nenumphares.
Onde a Victoria
régia ao crepúsculo assoma,
Abrindo aos
astros o seu cálice de aroma ! . . .
Poentes incríveis
d' esmeralda e de violeta!
Quizera em vós
molhar meu cálamo de poeta,
Nesta hora
afflicta de tormenta em pleno mar.
Ó São Lourenço,
vinde os ventos acalmar
Neptuno, ó deus
pagão d' estas equoreas plagas
Surge no
turbilhão colérico das vagas,
E, como outr'ora
ao duro Ulysses forasteiro,
Faze-me ver o teu
aspecto alviçareiro,
Compondo o iroso
mar, de tridente na mão...
Ah ! como se me
aperta o viuvo coração,
Que assistiu sem
temor d fome, á peste e á guerra,
Neste immenso
covão aquático da terra,
O Golfo de Lyão !
. . . Que tenebroso abysmo
Não ha coragem
fria ou sanhudo heroismo
Que se não curve
ante o espectáculo d' este horror:
Os ventos todos
em satânico furor
Dedilham
cantos-chãos na harpa das cordoalhas;
E, qual monstro
colhido em sobrepostas malhas
De uma rede sem
fim, que se alarga e distende
E que o enlaça
melhor quando mais se desprende,
Tal, nas ondas, a
nau, em demanda do rumo.
Bufando para a
treva o seu hausto de fumo.
Com fragor
estalando as juntas colossaes
Contra os bramantes
vagalhões e vendavaes,
Torres d' agua a
ferver, rochas macissas de ar,
— Singra aos
boléos o dorso concavo do mar.
* * *
Como é frágil,
meu Deus, o inflado peito humano
Basta-lhe este
esplendor horrífico do oceano;
Uma onda a
brincar na fralda de um rochedo,
Porque elle se
retraia e palpite de medo,
Sobresaltado como
trémula creança.
Só no vosso poder
concentrando a esperança.
E eu, Senhor, que
heresiarca! ha quasi um mez
Que não escuto o
vosso nome em portuguez,
Pobre andarilho exul
em terras extrangeiras ! . . .
Meu Deus,
reconduzi-me ás plagas brasileiras.
Que me importam
Milão e as agulhas do Duomo,
Os Frescos de Da
Vinci e as paysagens de Como,
Se, embora as
creações magnificas da arte,
O mundo é sempre
vão e egual por toda parte ? ! . . .
* * *
Antes Belém sobre
o seu rio somnolento,
Entre palmares
destrançados pelo vento;
Santa Maria de
Belém, a flor do norte,
Princeza de Judá,
erguida pela cohorte
De um guerreiro
varão, filho da raça ibérica,
Que a fundou, por
seu Rey, nesse valle d' America.
Alli ao menos não
se vive atropelado
Por lium.uias
legiões, que enchem de lado a lado
As ruas, nesse afan
de disputar a pão.
Nesse horto
arboral, é mais doce a illusão
De viver. Tudo
alli é simples e modesto.
O amor é natural,
um sentimento honesto,
Filho de uma
affeição reciproca e leal.
O beijo é um como
voto, é um sêllo immortal,
Que eterniza no
mundo o consorcio das almas.
Mesmo as próprias
paixões são meigamente calmas:
Brados
sentimentaes da vontade imperfeita,
Coisas que o
sangue gera e que o tempo endireita.
* * *
Ah ! quem me dera
o teu repoiso socegado
O panorama
verde-crome do teu prado,
Onde os negros
anuns piam, catando a relva.
O matto bravo, o
virgem bosque, a escura selva.
Lar de Moemas,
das indígenas Ophelias,
Que por falta de
lyrio esfolharão bromelias
Nos lagos turvos
e igapós do Rio-mar,
Em que não
morrerão,... porque sabem nadar.
Dae-me o vosso
condão, sirenicas princezas.
Flôres humanas,
que fluctuaes nas correntezas,
Porque me não
devore este ululante pego!...
Fico dentro no
mar um verdadeiro cego.
Deve ser muito
triste um cego a se afogar!
Ó minha santa
Iria, ensina-me a nadar.
Dá-me o teu manto
constellado, ó santa Iria!
Tenho frio de
horror, toda minh'alma é fria.
Bem vés: não
tenho mãe, dá-me um beijo materno,
Não me deixes
morrer neste aquático inferno,
Lyrio do mar, Foederis
arca hospitaleira,
Padroeira
tutellar dos náufragos, padroeira
D' esta minha
afflicção horrifica e sem termos!...
Manda um raio de
luar a estes equoreos ermos,
Ó meu São Carlos,
meu heróico rei de França!
Accende com teu
gladio o pharol da esperança;
Com o teu sceptro
real aplaca-me estes ventos,
Porque eu aporte
salvo aos paramos nevoentos
Da pátria de
Colombo; e corra a Annunziata,
Para purificar
esta minh'alma ingrata;
Este monstro que
habita o meu vil coração,
Sem luz, sem
Deus, sem fé, sem paz, sem contricção ! . . .
Este pouco
immortal e animico do Nada,
Consciente
perfeição no meu ser consummada.
Que só movida
pelos brutos escarcéos
Se prosternou
contricta em presença dos Céos.
Bordo do
Gouverneur, sobre o Golfo de Lyão, 9-1906.
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Título: Ave,
tempestas!
Autor: Carlos
Dias Fernandes
Fonte: FERNANDES,
Carlos Dias. Solaus. 2. ed. Gênova: Bacigalupi, 1907, p. 19-23.